Publicado Originalmente no jornal O Popular (clique aqui).

A arte tem o poder de invadir nossos lares, desnudando realidades muitas vezes ocultas e inquietando nossos corações sobre os desafios que permeiam a sociedade. Aristóteles já dizia que a arte imita a vida, funcionando como uma técnica estratégica que ajuda a superar obstáculos que a natureza, por si só, tem dificuldade em vencer. Uma obra de arte pode transcender o tempo, contando histórias que sobrevivem àqueles que as viveram, eternizando as lições de uma época.

Na série da Netflix, Pedaço de Mim, somos apresentados a uma narrativa que ecoa a realidade de muitos lares brasileiros atuais. Entre os diversos dramas familiares apresentados, destaca-se a história de Inácio, interpretado pelo ator Bento Veiga. Ele é filho de Silvia (Paloma Duarte) e, juntos, formam uma família monoparental. A série traz para a sala de estar as cores da teledramaturgia, alimentando discussões sobre questões do Direito de Família com uma clareza que só a arte pode proporcionar. Apesar da complexidade dos temas abordados, como a monoparentalidade e a socioafetividade, a delicadeza dos afetos entre os personagens suaviza as arestas mais duras, tornando os debates mais acessíveis e humanos.

Silvia personifica muitas mulheres brasileiras: uma médica trabalhadora, que se dedica integralmente à criação do seu filho cego. Sua trajetória evidencia a solidão da maternidade, especialmente quando se trata de tomar decisões cruciais sobre a educação e o cuidado de uma criança com necessidades especiais. A série toca, ainda que de maneira sutil, na dolorosa questão do abandono paterno em casos de crianças deficientes. Segundo o Instituto Baresi, 78% dos pais abandonam suas famílias quando nasce uma criança com uma doença rara ou síndrome. Todos nós conhecemos esta história de alguma forma, porque ela se repete em todas as camadas sociais, infelizmente.

Dados do IBGE reforçam essa situação: em 2018, havia mais de 11 milhões de famílias monoparentais no Brasil, representando cerca de 5% dos domicílios no país. Dessas, 12 milhões de mães criam seus filhos sozinhas, e mais de 64% delas vivem abaixo da linha da pobreza. Essas estatísticas tornam-se ainda mais palpáveis quando personificadas na figura de Silvia, que representa o esforço solitário de tantas mulheres que lutam para garantir um futuro digno para seus filhos, mesmo que no caso dela, a dificuldade financeira não seja uma questão.

Mas podemos ver também como a família deles é feliz e bem resolvida, com as dificuldades inerentes a qualquer grupo familiar. Pedaço de Mim também ilumina caminhos de esperança, ao explorar a socioafetividade como uma forma bonita de mudar realidades. A médica Silvia se casa com Vicente, interpretado por João Vitti, que assume o papel de padrasto de Inácio com uma devoção que transcende títulos e convenções. Sua relação com o enteado exemplifica o direito à socioafetividade, que é cada vez mais reconhecido e valorizado no Direito de Família. Vicente não é apenas um padrasto; ele é um pai, em todos os sentidos que realmente importam. Essa dimensão da trama ressalta a importância de reconhecermos legalmente as relações baseadas no afeto, que muitas vezes superam as de sangue.

A arte, portanto, não apenas imita a vida, mas também a amplia, oferecendo novas perspectivas e incitando reflexões profundas sobre temas complexos. Famílias monoparentais e laços socioafetivos são realidades que merecem nossa visão e nossa reflexão. Em séries como Pedaço de Mim, temos a oportunidade de observar estas questões sociais e jurídicas, contribuindo para um entendimento mais empático e inclusivo de realidades que, muitas vezes, ficam na penumbra.

Maria Luiza Póvoa Cruz, advogada especializada em Direito de Família, presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do Ibdfam.