O portal Migalhas publicou artigo exclusivo assinado pela advogada e sócia-fundadora do escritório MLPC e Advogados Associados Maria Luiza Póvoa Cruz sobre recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da sucessão na união estável. Leia o artigo na íntegra:
Reparação de uma injustiça
*Maria Luiza Póvoa Cruz
Uma vida conjugal é sinônimo de partilha de sentimentos, sonhos, conquistas e também de bens. Nada mais natural, considerando que a trajetória de duas pessoas que se gostam envolva torcida e esforço conjunto para o progresso pessoal, profissional e material individual e do casal.
O que parece óbvio, no entanto, era motivo de diversas ações judiciais questionando a divisão de herança. Explico: até o início deste mês, a união estável e o casamento possuíam valor jurídico diferenciado em termos de direito sucessório.
Após 14 anos em vigor, o artigo 1.790 do CC estabelecendo a distinção entre sucessões foi considerado inconstitucional. O reconhecimento do STF) derruba a divisão de bens conforme o tipo de relacionamento que, em seu cerne, diferenciava também variados núcleos familiares em relação àquele tradicional formado a partir do casamento.
Embora a Constituição de 1988 tenha aproximado o conceito social de família de seu conceito jurídico, na prática, a acepção era clara. Homossexuais e viúvas de companheiros com os quais dividiram dores e alegrias por muitos anos, por exemplo, costumavam ser excluídos da herança. Normalmente, a família da pessoa falecida – principalmente filhos de relacionamentos anteriores e pais ou irmãos – pleiteava judicialmente a exclusão dos parceiros em união estável do inventário.
Casos concretos evidenciam a complexidade das situações. No julgado do STF em que uma viúva havia sido obrigada a partilhar a herança com os irmãos do companheiro, a mulher foi beneficiada com a integralidade dos bens. Em outro, um homem que viveu por 40 anos com seu companheiro ganhou o direito de ficar com metade da herança, sendo a outra parte destinada à mãe do falecido.
Agora, finalmente, os ministros do Supremo consolidaram a previsão da CF ao garantir a equiparação entre os regimes da união estável e do casamento no que se refere à sucessão e incluir LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) no entendimento. Assim, a questão passou a ter repercussão geral para todas as instâncias do Poder Judiciário.
Mais do que nunca, a clareza sobre o artigo impactará toda a sociedade e impedirá o aumento da fila processual ligado à questão. Pesquisa feita pelos cartórios do Brasil mostra que a maior parte dos brasileiros prefere a união estável ao casamento. O levantamento realizado entre 2011 e 2015 registra que enquanto a primeira aumentou 57% no País, o segundo cresceu 10%.
Considerando o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento primeiro da ordem constitucional, vértice do Estado de Direito, é impossível pensar em direitos desatrelados da ideia e do conceito de dignidade. Trata-se, esta, de um macroprincípio, sob o qual irradiam outros princípios, como a liberdade, a autonomia privada, a cidadania, a alteridade e a solidariedade.
É assim que a interpretação da Corte deve ser entendida. Independente do casamento no “papel”, se o companheiro provar a união estável passa a ter direito à metade da herança do falecido e o restante é dividido entre os filhos ou pais ou, na inexistência deles, os bens ficam integralmente com o companheiro.
O Direito dinâmico gira em torno da pessoa humana. A sociedade contemporânea, pluralista, multicultural traz novos modelos de convivência, novos modelos familiares para além daquele constituído pelo casamento. E o intérprete da norma? Se encontrava, muitas vezes, frente a um regramento jurídico que não atende a pessoa humana e que não acompanha a evolução do conceito atual de família.
A vida e as relações sociais que constituímos são ricas, amplas. Por isso, os textos legislativos não conseguem acompanhar a realidade e a evolução social, principalmente da família contemporânea, hoje marcada pela pluralidade e afeto. Cabe a nós, estudiosos e profissionais do Direito, buscar a justiça justa.
*Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada, advogada, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em Goiás (Ibdfam-GO) e sócia-fundadora do escritório MLPC e Advogados Associados.
Fonte: Assessoria de Comunicação do escritório MLPC e Advogados Associados | Ampli Comunicação e portal Migalhas