A juíza aposentada e advogada Maria Luiza Póvoa Cruz assina artigo publicado na edição de hoje (15/09) do jornal O Popular, em que trata das novas questões legais e éticas envolvidas nas técnicas de reprodução assistida. O tema será abordado pela advogada em palestra que ela ministrará no próximo dia 20 de setembro no 4º Congresso do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam) Ceará, que será realizado em Fortaleza nos dias 20 e 21 deste mês. Leia íntegra do artigo assinado por Maria Luiza Póvoa Cruz:
Maternidade ainda sempre certa?
Maria Luiza Póvoa Cruz
O legislador não consegue prever todas as hipóteses que virão a ocorrer na vida real. Esse desnível entre a lei e os fatos, entre a previsão do legislador e as ocorrências da vida, levou Lacerda de Almeida a atribuir pernas curtas ao legislador.
Durante séculos, só havia uma maneira de se conceber, ou seja, através da relação sexual de um homem com uma mulher. A reprodução assistida trouxe novas possibilidades, inclusive a da participação de uma terceira pessoa, estranha à relação conjugal. Com isso, a filiação biológica pode dissociar-se da afetiva, criando novas relações sociais e jurídicas, até então, jamais vivenciadas.
As questões éticas ligadas à reprodução humana suscitam opiniões provindas das concepções ideológicas e filosóficas sobre as condições humanas e, por isso mesmo, sobre a ética.
É certo que a reprodução assistida vem ampliando sobremaneira os limites da fecundidade masculina e feminina. O estabelecimento dessas técnicas veio responder a um desejo de reprodução de homens e mulheres. Esse desejo de filhos, de família, de continuidade é que vem legitimando a procriação de uma série de inovações biotecnológicas. O professor Miguel Kottow, renomado bioeticista chileno, aponta como critério para a validação humana e moral do ser, que “o começo da vida humana é a aceitação pela mulher que deseja e decide ser mãe (independentemente da forma de fertilização, ou até se o organismo gestador é locado ou original).
E, a par das premissas referidas sobre reprodução assistida, o princípio “mater semper certa est” (mãe é a gestadora), embora de fácil determinação, incumbiu-se a biogenética de mudá-lo.
A individualidade de um ser vivo sexuado na concepção reside na síntese dos gametas feminino e masculino. Os gametas são uma extensão das vidas dos seres que os produziram. E, sob essa ótica, o óvulo abrigado no útero hospedeiro é, na realidade, extensão das vidas que o produziram. A mãe gestadora estará apenas abrigando a gestação de um ser, que detém todas as características genéticas de quem o reproduziu.
É possível criticar o hiato no lícito que a modernização e a liberalização dos costumes teriam introduzido no campo da sexualidade e das práticas reprodutivas. Necessário se torna, porém, considerar os afetos ao avaliar o tipo de relação possível entre os genitores que desejam ter um filho e a gestante portadora. Os sentimentos que unem o casal, esse desejo de filhos, de família, de continuidade é que vêm legitimando a procriação no campo da medicina reprodutiva.
Aliás, o fenômeno da desbiologização, que se vem verificando no Direito de Família, já permitiu a introdução de regras legislativas, a fim de estabelecer outras fontes das relações de parentesco que não a consanguinidade. Logicamente, a exemplo da adoção, a pessoa concebida será parente em linha reta descendente de todos os ascendentes de seu pai, ou mãe, bem como em linha colateral dos outros filhos de seus pais.
É, pois, moralmente aceitável tudo que venha ao encontro da busca da felicidade.
A Constituição brasileira de 1988 foi o marco que estabeleceu a conversão do antigo modelo familiar em um modelo de família socioafetiva, em que a preocupação precípua é o bem-estar de seus entes formadores, em detrimento da preocupação meramente patrimonial que vigorava até então. Nesse novo contexto, surge a família originada das técnicas de reprodução assistida, que analisada sob a ótica constitucional é tão legítima como qualquer família natural. O parágrafo sexto do artigo 227 da CF proíbe quaisquer discriminações relativas à filiação, vindo a beneficiar os indivíduos nascidos com auxílio da RA.
Inobstante os avanços no campo da medicina e da biogenética, o legislador de 2002 não enfrentou a Reprodução Assistida, poderia ir além do artigo 1.597, do Código Civil, entretanto não o fez.
O Conselho Federal de Medicina, sabiamente, tenta minimizar a delicada questão, em razão da ausência de regulamentação jurídica.
Importa considerar que pais devem ser aqueles que lutaram pelo sonho de ter um filho, ainda que para isso tivessem que recorrer a estranhos.
E, embora a gravidez de substituição se processe sem fins lucrativos (nosso ordenamento jurídico proíbe a utilização do corpo ou parte do mesmo de forma lucrativa), as inovações biotecnológicas devem ser acompanhadas de forma progressiva pelo Poder Judiciário. Os juízes da primeira instância são e serão os receptores das transformações; na área social, ou científica.
É razoável e intuitivamente compreensível, impor limites à ação humana, porém ela se choca com uma outra intuição: o fato de ter também uma segunda natureza, constituída de natureza biológica e cultural, graças à qual pode corrigir sua primeira natureza, conforme seus desejos e projetos, ou seja, transcender (pelo menos parcialmente e durante um certo tempo) sua condição biológica.
Neste sentido, podemos considerar eticamente legítimo, e até indício de um estágio adulto da moralidade humana, o fato de o Homem tentar controlar e direcionar os processos e as funções de sua biologia.
E, citando o teólogo Leonardo Boff, “o ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza…. Ele foi criado criador”.
Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada, presidente do Instituto de Direito de Família – IBDFAM – GO