Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui).

No cenário contemporâneo, a responsabilidade parental enfrenta novos desafios com a onipresença da tecnologia digital na vida das crianças. Como avó, me vejo diante de um mundo novo e com preocupações que não tive como mãe. Mas hoje é imperativo refletir sobre o papel dos pais e educadores na mediação do uso de dispositivos eletrônicos por crianças menores de idade.

Recentemente, uma decisão inovadora no Rio de Janeiro ganhou destaque na mídia ao proibir o uso de celulares por crianças menores de 12 anos nas escolas municipais, durante todo o horário escolar, incluindo recreios e intervalos entre as aulas. Essa medida, embasada no Relatório de Monitoramento

Global da Educação 2023 da Unesco, destaca os impactos negativos do uso irrestrito dos aparelhos celulares na aprendizagem, concentração e saúde das crianças.

O Brasil, sendo um dos países que mais utiliza redes sociais no mundo, enfrenta um dilema único. Como proteger a privacidade e o bem-estar de crianças e adolescentes em um ambiente digital tão vasto e dinâmico? O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, garante direitos como privacidade e proteção da imagem, mas como aplicar esses princípios quando oferecemos ferramentas que podem expô-los prematuramente?

A intoxicação digital infantil é uma realidade cada vez mais presente. Dados da pesquisa Tic Kids Online Brasil 2019 indicam que, naquele ano, 89% da população entre 9 e 17 anos era usuária de internet, sendo 95% destes utilizando o telefone celular como principal dispositivo de acesso. A magia do brincar ao ar livre, como também viveu a minha geração e a dos meus filhos, e o contato com outras crianças têm sido prejudicados, enquanto a exposição digital aumenta.

Como advogada de família, destaco a importância da responsabilidade parental nesse contexto, mas também a importância de que se criem instrumentos legais para proteger nossas crianças. Em análise no Senado Federal, o PL 2.628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira e relatoria do senador Jorge Kajuru, propõe medidas cruciais para garantir a segurança on-line dos jovens no Brasil. O texto busca proibir a criação de contas em redes sociais por menores de 12 anos, estabelecendo regras específicas e mais protetivas para essa faixa etária. Além disso, aborda a necessidade de conscientização e educação para o consumo na era digital.

É claro que a lei deverá ser sempre somada à supervisão e orientação dos pais em relação ao uso seguro e responsável das plataformas de mídia social. Estabelecer limites saudáveis para o tempo de tela, monitorar o conteúdo acessado e manter uma comunicação aberta são práticas fundamentais e garantem segurança para os filhos.

A responsabilidade parental em tempos digitais não é estática e requer adaptação contínua às mudanças tecnológicas. Ao educar e apoiar as crianças para o novo tempo que vivemos, estabelecer regras torna-se fundamental.

Em resumo, a reflexão sobre o papel dos pais na era digital é urgente. A decisão no Rio de Janeiro é um exemplo de como as autoridades estão buscando proteger as crianças diante dos desafios digitais.

Instigo a sociedade a discutir e adotar medidas concretas para enfrentar esse problema, garantindo o desenvolvimento saudável das futuras gerações.

Maria Luiza Póvoa Cruz, advogada especializada em Direito de Família, presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa do Ibdfam.

Publicado originalmente no jornal O Popular. Clique aqui.

O ditado popular nos lembra que a justiça divina pode tardar, mas não falha. Em meio a um mundo marcado por guerras, intolerância, preconceito, miséria e fome, a esperança se mantém viva à medida que aprendemos e evoluímos como humanidade, passo a passo, guiados por gestos amorosos e palavras inspiradoras.

Quase uma década se passou desde um acontecimento que ecoou por nossa comunidade, gerando debates e sentimentos diversos. Quem se lembra quando o padre César Garcia, corajosamente, abençoou um casal homoafetivo? Na época, a ação que resultou em seu afastamento do altar católico e de suas funções na igreja, apesar do clamor de parte dos fieis. Como católica e amiga, questionei publicamente a decisão do clero de afastar um líder religioso por tratar com respeito, amor e igualdade aqueles que buscavam as bênçãos divinas, no que recebi respostas baseadas em normas eclesiais que só nos distanciam da Igreja.

Hoje, dez anos após esse episódio, testemunhamos uma mudança significativa neste cenário que tanto custou ao padre César, ao casal de amigos e tantos outros que se viram em situação similar. Mesmo que o silêncio ainda prevaleça em alguns sermões locais, o papa Francisco, em sua sabedoria, anunciou, em dezembro passado, que os padres da Igreja Católica estão autorizados a abençoar relacionamentos de casais do mesmo sexo.

O documento “Fiducia supplicans” não altera a doutrina tradicional da Igreja sobre o casamento, mas reflete a visão pastoral do papa Francisco em abrir a Igreja Católica para a diversidade. Em suas palavras, “Não podemos ser juízes que apenas negam, rejeitam e excluem.” A sua reflexão oferece uma contribuição específica e inovadora para o sentido pastoral das bênçãos, permitindo ampliar e enriquecer sua compreensão, de que não se nega uma bênção àqueles que a pedem.

A bênção, agora permitida pela Igreja, é um ato que já era realizado por parte dos párocos, e vem como uma oração, um pedido a Deus por proteção e favorecimento, um ato tão bonito, singelo e amoroso, como deveria ser a natureza da nossa relação com o divino. Como operadora do Direito, vejo essa mudança como mais um passo positivo em direção à inclusão e ao reconhecimento de diversas formas de amor na nossa sociedade, em mais um aspecto.

Lembro-me do avanço da legislação diante das transformações sociais, como a equiparação das relações homoafetivas às uniões estáveis entre heterossexuais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2013, que obrigou a realização de casamentos homoafetivos em todo o país.

Embora não corrija o passado, o reconhecimento da Igreja Católica às uniões homoafetivas traz esperança de um mundo mais inclusivo e justo. Como fiel e cidadã, sinto-me satisfeita por ver a evolução nas atitudes da Igreja, demonstrando que, assim como a justiça divina, a dos homens também pode trilhar o caminho do entendimento e aceitação.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada, advogada de Família e presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos dos Idosos do IBDFAM

Publicado originalmente no jornal O Estadão (clique aqui).

Isolamento contra a vontade promovido por parte dos filhos ou curador tem se tornado mais comum. Tribunais têm aplicados princípios previstos na lei de alienação parental

Durante cinco anos, uma empresária de 54 anos, de Sorocaba (SP), ficou sem ver a mãe de 87, moradora da capital, porque as duas irmãs que cuidavam da idosa sempre criavam obstáculos à sua visita. Em julho, ela foi chamada para o velório da mãe, que adoeceu e morreu sem que ela soubesse. A idosa foi vítima de alienação parental em relação à filha caçula. Especialistas apontam que a alienação parental inversa, quando envolve idosos, tem se tornado cada vez mais comum no Brasil.

O termo surgiu em analogia à Lei 12.318/2010, que trata originalmente da relação das crianças ou filhos menores e incapazes com os pais. “É bem mais comum do que imaginamos que uma pessoa idosa seja isolada por um dos filhos ou curador contra a sua vontade e privada do convívio com parentes, amigos e até mesmo de um cônjuge ou filho”, diz a juíza aposentada Maria Luiza Póvoa Cruz, presidente da Comissão Nacional do Idoso do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam).

No caso previsto em lei, considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou adolescente promovida por um dos pais ou avós, ou pessoa que tem sua guarda, para que repudie o outro genitor ou não mantenha vínculos com ele.

Estatuto do Idoso, de 2003, não aborda a alienação parental contra pessoas acima de 60 anos, mas a legislação é usada pelos juristas por analogia, já que a prática provoca danos à saúde emocional e psicológica dos idosos.

Conforme Maria Luiza, tanto os tribunais estaduais como os superiores têm entendido que a lei que trata da alienação parental pode ser requisitada em casos semelhantes envolvendo idosos.

“Em que pese esse debate, a lei tem sua importância, reconhecida pelo legislador em 2010, e tem sido aceita pelos tribunais em práticas dessa natureza praticadas contra pessoas idosas.”

População idosa no Brasil tem crescido

Com o crescimento da população idosa, a questão ganha mais. A Organização Mundial de Saúde estima que, em 2050, cerca de 22% da população mundial terá mais de 60 anos.

Conforme o IBGE, em 2022 a população brasileira idosa chegou a 32,1 milhões, alta de 56% ante 2010, quando era de 20,5 milhões. Outro dado do instituto aponta que 2,5 milhões de mulheres brasileiras deixam de trabalhar para cuidar de parentes, sobretudo idosos.

Conforme a presidente do Ibdfam, esse envelhecimento faz com que mais pessoas se mantenham ativas por mais tempo, o que muda significativamente as estruturas familiares.

“E cada vez mais idosos integram a renda que compõe os orçamentos familiares, sobretudo das camadas mais vulneráveis da população. Isso pode levar a práticas de isolamento do idoso por um ou mais filhos em relação aos demais”, disse.

Segundo ela, é cada vez mais comum a situação em que filhos passam a administrar o patrimônio de pais idosos que estão com a saúde física e a higidez mental abaladas.

“Porém, essas pessoas não estão interditadas, mas ainda assim se veem nessa condição. Em muitos casos, pouco desse recurso chega à casa dos idosos e, nessa etapa da vida, as despesas com saúde e outros suportes necessários são enormes. Essa realidade, também, desencadeia conflitos familiares, que podem resultar em casos de alienação parental”, disse.

Para a advogada Amanda Helito, especialista em Direito de Família e Sucessões, as decisões judiciais com o fim de proteger idosos de condutas ou atos de alienação parental se tornam mais comuns, na medida em que o tema ganha destaque nos debates sociais e meios de comunicação.

Segundo ela, embora ainda não se fale em jurisprudência firmada em relação idosos, o que tem se verificado é uma tendência do Judiciário de aplicar de forma análoga à Lei de Alienação Parental em casos de atos alienatórios praticados contra essas pessoas.

“Há casos em que os atos de alienação parental têm sido interpretados pelos tribunais como maus-tratos, considerando a ausência de previsão legal de alienação parental praticada contra pessoa idosa”, afirma a advogada. A Justiça tem entendido que a convivência familiar é direito básico do idoso e não pode ser obstada sem causa justa.

‘Afronta à dignidade’

Em dezembro de 2022, a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu por unanimidade conceder a um homem o direito de visitar sua mãe de quase 90 anos, mantendo a sentença de 1º grau que já tinha sido favorável ao filho.

Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui).

Tenho a honra de carregar o nome da minha mãe, somado ao sobrenome do meu pai. Considero isso um presente que recebi desde o meu nascimento, pois trago comigo suas histórias, legados e o amor que eles tiveram por mim em vida. Compartilhar o nome com alguém é um gesto significativo e uma parte fundamental da organização da nossa sociedade.

No filme “Me chame pelo seu nome”, de 2017, amantes combinam de se chamarem um pelo nome do outro, compartilhando assim aquilo que tinham de mais precioso. Uma delicadeza sem fim, esta película que ganhou o Oscar no ano seguinte.

Desde a Idade Média, várias sociedades ocidentais adotaram sobrenomes familiares, e esse costume continua até hoje, quando os filhos, ao nascerem ou serem adotados, recebem os sobrenomes dos pais. Embora seja algo previsto em lei, não deixa de ser um gesto bonito e cheio de significado.

O nome é frequentemente considerado um dos primeiros marcos na formação da identidade de uma pessoa. Ele é atribuído desde o nascimento e é uma das maneiras pelas quais uma pessoa começa a ser reconhecida e identificada pelos outros. Mas, e se esse nome não fizer sentido na construção da sua individualidade? A possibilidade legal de mudar o próprio nome representa um avanço significativo no reconhecimento da importância da identidade pessoal.

A Lei Federal nº 14.382/22, que introduziu a possibilidade de mudança de nome diretamente em Cartório, representa um marco na busca pela dignidade e respeito às identidades individuais. Em um ano, a norma trouxe várias alterações na Lei de Registros Públicos, ampliando as opções para a alteração de nomes e sobrenomes sem a necessidade de procedimentos judiciais. Até julho deste ano, 342 pessoas mudaram de nome em Goiás após a nova lei.

A importância legal dessa conquista reside na compreensão de que cada pessoa tem o direito de escolher como deseja ser chamada, de acordo com sua identidade de gênero, convicções pessoais ou simplesmente porque não se identifica com o nome de nascimento. A dignidade está intrinsecamente ligada à possibilidade de se reconhecer e ser reconhecido pelo próprio nome, sem que este seja uma imposição externa.

Num mundo diverso e em constante evolução, a flexibilidade na escolha do próprio nome é um reflexo de uma sociedade que valoriza a individualidade e o respeito à autonomia das pessoas. Na minha família, temos mais uma Maria Luiza, minha neta, nome que recebeu de seus pais e que espero que faça sentido em sua vida adulta. Procuro honrar o nome que me foi dado pelos meus pais e fazer com que a pequena Maria Luiza sinta orgulho do seu nome de batismo. No entanto, é reconfortante saber que ela e qualquer outra pessoa tem a liberdade de escolher quais heranças desejam levar ao longo de suas vidas. A dignidade de escolher o próprio nome é um direito fundamental que merece ser celebrado e protegido.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada de Família.

Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui)

Começamos fevereiro com a notícia triste do falecimento da jornalista Glória Maria, uma mulher que deixa seu nome na história do Brasil a partir do seu exercício profissional, seu estilo único de noticiar e sua presença por 50 anos na telinha das residências brasileiras.

Mas para além dos tabus quebrados por esta profissional única da televisão, também faleceu a mãe Glória Maria, deixando duas filhas ainda adolescentes. A orfandade delas se tornou preocupação de uma legião de amigos e fãs.

Mãe solo, ela adotou Laura e Maria ainda pequenas e mudou a sua vida a partir deste encontro com a maternidade. Falou diversas vezes de como suas meninas a proporcionaram um outro olhar para o mundo. Mudou a rotina, construiu outro tipo de castelo e se dedicou à educação delas.

Mas em 2019 começou a encarar o fato que marca a vida de todos nós: a possibilidade da morte. E ela não poupa nem pais, nem mães. E a sabedoria da mulher que guardava recordes de viagens pelo mundo, de tantas primeiras vezes, não faltou para ela, que bem antes disso já tinha escolhido tutores para se responsabilizarem pela educação das filhas até que as mesmas se tornem adultas.

Esta deveria ser uma preocupação de todas as famílias, sejam elas formadas por mães e pais solos ou por casais. A morte é destas fatalidades que deixamos de falar como se isso a afastasse da nossa trajetória. Mas planejar a partida é um gesto de carinho com quem fica.

A nomeação de tutores está prevista no Código Civil e deve ser feita pelos pais mediante testamento ou qualquer outro documento autêntico. Caso os pais não o façam em vida, a responsabilidade passa a ser de um juiz que decidirá a tutela a partir da nomeação de um familiar mais próximo. O tutor passa a ser responsável pela criação da criança ou adolescente até que se torne adulto e, caso existam bens, também será responsável pela administração destes.

Então, quando pensamos na tutela, devemos escolher pessoas próximas, conversar com elas e compartilhar o desejo de nomeá-las como responsáveis pela criação dos filhos em caso de falecimento. Penso que apesar de ser uma tarefa difícil, é a melhor forma de lidar com o futuro, prevenindo, escolhendo quem já faz parte da vida daquela criança.

Se deixamos para que a Justiça decida algo tão íntimo, corremos o risco de que não sejam consideradas questões que vão para além da árvore genealógica. Quem realmente faz parte da vida da nossa família, quem convive, quem tem afinidade e quem se disporia a cuidar dos nossos filhos na nossa ausência? O que Glória Maria fez é um último gesto de amor para com suas meninas.

Em um livro de crônicas, o escritor Fabrício Carpinejar discorre sobre a morte e seus impactos. Em uma delas escreveu assim: “Ninguém será lembrado pelo que morreu, mas pela postura que escolheu para viver.” Esta frase pode representar muito bem Glória Maria, mas as suas escolhas post mortem também serão lembradas por aquelas que mais sentirão sua falta: suas filhas. Foi o cuidado dela que garantiu que suas meninas tivessem segurança financeira e judicial para continuarem com suas vidas após a sua morte.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada

Maria Luiza Póvoa Cruz

Quando pensamos nas famílias e nas suas obrigações nos cercamos de preocupações com as crianças e os jovens, mas há no vínculo familiar outras responsabilidades que, muitas vezes, são relegadas e até desconhecidas. Nas situações de abandono ou de ausência dos pais, os filhos podem contar com os avós durante o seu crescimento para que sejam assegurados seus direitos básicos, como saúde e educação, e seu desenvolvimento socioemocional, tendo os avós responsabilidade legal sobre os netos. Mas e no inverso? Quem se responsabiliza pelos pais e pelos avós quando estes, na velhice, precisam tanto de assistência material quanto moral?

A relação de cuidado de pais e avós com os seus filhos e netos prevê reciprocidade ao cuidado e solidariedade. Consideramos que o núcleo familiar é construído a partir de relações de afeto e, neste sentido, é esperado o cuidado entre os membros de uma mesma família. Então, em dois extremos da nossa sociedade e dentro do Direito das Famílias, no Brasil, temos o abandono de crianças e também de idosos. Ambos acontecem em um momento de fragilidade e de falta de autonomia de uma das partes. E são cruéis e devastadores, colocando em risco seres humanos, e um passo atrás no processo civilizatório.

No caso dos avós, o Estatuto do Idoso assegura às pessoas com mais de 60 anos proteção e garantia do envelhecimento sadio e digno com acesso a todas as formas de assistência, seja ela pessoal, física ou social. Parte desta responsabilidade é do poder público e da comunidade, outra parte é da família, que deve amparar moralmente e financeiramente seus idosos. E isso não significa apenas garantir sua sobrevivência, muitas vezes já garantida pela aposentadoria ou por um serviço social, como as instituições de longa permanência, mas também o direito ao afeto, à convivência e à sua própria dignidade.

Temos no Brasil hoje cerca de 32,9 milhões de pessoas com mais de 60 anos, segundo o IBGE. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 15,7% da população idosa no Brasil está submetida a algum um tipo de violência, incluindo o abandono e a negligência.

Quantos destes avós são privados da convivência com seus netos e bisnetos, quantos foram arrimo de suas famílias e hoje estão abandonados ou ainda garantem o sustento dos seus sem que sejam cuidados ou respeitados? Pra isso não temos estatísticas, mas basta olhar para o lado, seja na fisionomia dos que vivem em situação de rua, muitos com mais de 60 anos, ou nos pedidos recorrentes dos chamados asilos por ajuda em sua manutenção.

Onde estão os filhos e os netos destes avós que, no auge de suas vidas, são esquecidos por seus herdeiros? É preciso saber que a família é uma instituição com responsabilidades compartilhadas e que cabe a cada um o cuidado com o outro, dentro da linha histórica do tempo. Para a lei, seja na Constituição ou o Estatuto do Idoso, os avós não devem ficar só nos porta-retratos ou nos nomes que carregamos em nossos documentos pessoais. Eles também são nossa responsabilidade, de afeto solidário e de cuidado responsável. São eles que garantiram nosso acesso à sociedade e somos nós que devemos garantir que eles usufruam da velhice com plenitude e segurança.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada

Publicado originalmente no portal Rota Jurídica (clique aqui).

Ficar em casa nos últimos dois anos por causa da pandemia do coronavírus trouxe prejuízos para toda a sociedade, mesmo que fosse a solução exigida para a contenção dos casos e das mortes por Covid-19. Mas enquanto a medida sanitária protegia a sociedade do avanço da doença, o isolamento agravou os casos de violência doméstica e de abandono das pessoas idosas. Distante das estruturas sociais, os idosos ficaram ainda mais desprotegidos, uma epidemia silenciosa em todo o Brasil.

No final de 2020, primeiro ano de pandemia, o número de denúncias no Disque 100 de violações aos direitos humanos contra pessoas com 60 + foi 53% maior que em 2019. No total, foram 48,7 mil registros de ligações recebidas pelo dispositivo do Governo Federal. O número assustador ainda assim é menor do que a angústia e o abandono destas vítimas.

Na contramão do êxito social que é aumentar a longevidade das pessoas está a não garantia de qualidade de vida e de segurança para quem envelhece. É como estar no topo do pódio por ter sobrevivido aos anos e aos desafios da vida em sociedade e perder a relevância para todos os atores sociais.

A longevidade da população brasileira aumenta ano a ano. Dado divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a expectativa poderia chegar a 76,8 anos no Brasil, não fosse a crise de mortalidade causada pela Covid-19. Este aumento dos velhos na sociedade traz desafios para a família, para a sociedade e para os responsáveis pelas políticas públicas.

No próximo ano, o Estatuto do Idoso completará 20 anos e traz em sua essência a garantia dos direitos fundamentais às pessoas com mais de 60 anos, como saúde, alimentação, educação, cidadania, liberdade e dignidade.

Mas enquanto as palavras se tornaram conhecidas de toda a sociedade, a realidade destas pessoas ainda está longe do que prevê a Lei 10.741. O abandono, a fome, a violência física e emocional, o isolamento e a falta de acesso ao básico, como vacinas, atendimento médico, remédios e a própria aposentadoria são rotina no nosso país.

O que falta para nós, enquanto sociedade, que não permite assegurar àqueles que nos antecederam e que vivem agora o futuro, que deverá ser o nosso, qualidade de vida e segurança, em tempos pandêmicos ou não? É urgente pensar que somos responsáveis por cada caso envolvendo idosos vítimas de violência, porque eles são nossos pais, nossos avós, nossos tios e também nosso espelho.

É preciso que a sociedade enxergue as pessoas com mais de 60 com todas as suas singularidades e necessidades. Que ofereça a nossos idosos uma rede de apoio, baseada em serviços de qualidade e com competência para identificar situações de vulnerabilidade e violência, sejam as causadas por suas famílias, pelo entorno ou mesmo pelo poder público. Assim como as nossas crianças, os idosos também são o nosso futuro. Um garantirá a nossa continuidade; o outro é exatamente o que antecede a nossa chegada.

Redes estruturadas com assistência social, atendimento à saúde, acesso à informação e aos serviços públicos gratuitos são primordiais para os velhos, assim como visibilidade para suas necessidades, para suas expressões e também para aquilo que eles dizem e pensam.

Neste dia 15 de junho celebra-se o Dia Mundial da Consciencialização da Violência contra a Pessoa Idosa. Mas, mais do que conscientizar, precisamos urgentemente combater essa violência e sanar esta epidemia.

*Maria Luiza Póvoa Cruz é presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do Ibdfam e presidente do I Congresso Nacional do Idoso, do Ibdfam

Publicado originalmente no jornal O Popular (clique aqui)

Há pouco mais de um ano, em abril de 2021, entrou em vigor no Brasil a Lei n° 14.132/21, que introduziu, na Parte Especial do Código Penal brasileiro (Capítulo VI, art. 147-A), penas para o crime de perseguição. Na era da Internet, essa prática ficou conhecida como stalking.

O termo tem origem na língua inglesa e deriva do verbo stalk (vigiar, espiar, ficar à espreita). Vários casos já foram levados à Justiça com base na mudança legislativa. A modalidade criminosa, nesse caso, é apontada quando alguém (stalker) passa a perseguir outra pessoa obsessivamente, causando à vitima enormes prejuízos, de ordens diversas.

Quem já sentiu sua privacidade invadida e sua liberdade restringida por essa prática reiterada sabe o quão nociva ela pode ser. Nos últimos anos, por advogar em muitos casos de divórcio, separações não consensuais, em disputas de guarda de filhos e partilha de bens, várias vezes me deparei com clientes (mulheres, em sua maioria) padecendo desse tipo de perseguição criminosa que causa, quase sempre, danos à integridade psicológica e emocional das vítimas.

Mais recentemente, porém, tornei-me eu, também, alvo da prática de stalking, conduta criminosa assumida por um estelionatário. Fui vítima de calúnia, difamação e importunada dezenas de vezes. Tentou-se atingir minha reputação, falsificaram documentos e assinaturas e disseminaram informações falsas entre meus contatos pessoais e de trabalho. Já sob o vigor da nova legislação, obtive rápida resposta do Poder Judiciário, tendo sido, o acusado, condenado.

As últimas estatísticas disponíveis apontam para um número de usuários ativos de mídias sociais crescente em todo o mundo. Somos hoje perto de 4,5 bilhões de pessoas conectadas em aplicativos de relacionamento, como o Instagram, Facebook, Twitter, entre outros. A rapidez com que as conexões humanas se dão nesses espaços torna-se instrumento poderoso nas mãos de pessoas que querem praticar esse tipo de crime. A disseminação de notícias falsas (as tenebrosas fake news) pode arruinar reputações, projetos, instituições. É preciso estar atento e forte, combatendo tais práticas, por meio de denúncias formais, e não se curvando, jamais, diante da tentativa do perseguidor de subjugar seu alvo.

Maria Luiza Póvoa Cruz é juíza aposentada e advogada

Originalmente publicado na Revista Proteger

O isolamento social é uma das principais estratégias para reduzir a disseminação do patógeno COVID-19, o novo coronavírus (SARS-CoV-2). Há comprovações em todo planeta de que a estratégia é positiva, no entanto, segundo o portal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, esse isolamento social tem causado alguns efeitos negativos, incluindo o aumento da violência contra idosos, crianças, adolescentes e mulheres.

‌Dentro desse grupo de vulneráveis, a violência contra o idoso ganhou uma proporção lastimável, de acordo com o Portal G1, em 2020. Já durante a pandemia, o número de denúncias de violência e de maus tratos contra os idosos cresceu 59% no Brasil. Entre março e junho do ano passado foram 25.533 denúncias. No mesmo período de 2019, foram 16.039. Como proteger nossos idosos da violência que acontece dentro de casa, no âmbito do seio familiar?

‌Dados da Organização Mundial das Nações Unidades (ONU) informam que a população mundial estimada de idosos seja de 629 milhões de pessoas. Se esse ritmo acelerado se mantiver, em 2050, o número de pessoas idosas será maior do que a quantidade de crianças abaixo dos 14 anos, cerca de 2 bilhões de idosos, ou seja, 2% da população mundial. População que, em geral, já está fora do mercado de trabalho, mas tem recursos financeiros garantidos por lei. No Brasil, 20% dos lares têm na pessoa idosa a principal fonte de renda da família. No caso dos vulneráveis, esse fato o torna ainda mais suscetível à violência doméstica.

‌A violência contra o idoso pode ser definida como “um ato único, repetido ou a falta de ação apropriada, ocorrendo em qualquer relacionamento em que exista uma expectativa de confiança que cause dano ou sofrimento a uma pessoa idosa”. O regramento legal que protege essa população tem como base o Estatuto do Idoso, estabelecido já 18 anos através da Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003, que prevê punições para os crimes cometidos contra idosos, assim como a garantia de condições mínimas de tratamento com dignidade para essa população. E este foi construído no alicerce da Constituição Federal, de 1988, que em seu artigo 230 define ser “dever da família, do Estado e da sociedade zelar pelo idoso, amparando-o e assegurando a sua participação na comunidade, defendendo a sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhe o direito à vida”.

‌Segundo o Ministério da Saúde, são vários os tipos de violência cometidos contra idosos no âmbito da família. a mais comum é a negligência, quando os responsáveis pelo idoso deixam de oferecer cuidados básicos, como higiene, saúde, medicamentos, proteção contra variação do tempo. O abandono vem em seguida e é considerado uma forma extrema de negligência. Acontece quando há ausência ou omissão dos familiares ou responsáveis, governamentais ou institucionais, de prestarem socorro a um idoso que precisa de proteção.

‌A violência física e caracterizada quando é usada a força para obrigar os idosos a fazerem o que não desejam, ferindo, provocando dor, incapacidade ou até a morte. A violência sexual ocorre quando a pessoa idosa é incluída em ato ou jogo sexual, com objetivo de obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas por meio de aliciamento, violência ou ameaças.

‌A psicológica ou emocional é a mais sutil das violências. Inclui comportamentos que prejudicam a autoestima ou o bem-estar do idoso, entre eles, constrangimento, destruição de propriedade ou impedimento de que estejam com amigos e familiares. E, por último, a violência financeira ou material, que é a exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou o uso não consentido de seus recursos financeiros e patrimoniais.

‌Todo a problemática enfrentada por essa população inclui também as precárias condições de vida que a maior parte dos idosos no Brasil tem que enfrentar por conta de ínfimas pensões e aposentadorias, que são insuficientes para suprir as necessidades essenciais à sua subsistência, principalmente quando tais recursos, muitas vezes, são a única fonte de renda de toda família.

‌Toda e qualquer proteção oferecida aos idosos, seja do ponto de vista, legal, constitucional ou social parte do princípio da informação. Apesar da mentalidade utilitarista da sociedade que os marginaliza, o valor legal do idoso é reconhecido, no Brasil, por meio do ordenamento jurídico. São pessoas que contribuíram, e ainda podem contribuir, para a construção de uma sociedade solidária e justa. Mas é necessário que estejam informados e que toda a sociedade tenha ciência e coloque em prática o que se preconiza na Constituição Federal e no Estatuto do Idoso. Todos os caminhos possíveis para a construção de uma rede de proteção eficiente passam por essas duas cartas legais.

‌A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou, em dezembro de 2020, o período de 2021 a 2030 como Década do Envelhecimento Saudável. O objetivo é encorajar ações internacionais para melhorar a vida dos idosos, suas famílias e comunidades, tanto durante a pandemia de COVID-19, como depois disso. A saúde é fundamental para se ter experiências na velhice. O Brasil precisa sair da inércia em relação aos seus idosos e fazer parte das ações internacionais que promovem o bem-estar dessas pessoas. Temos capital humano para tanto, precisamos de incentivo.

‌Embora haja leis visando a proteção aos idosos e que o Estado também possui consigo um papel primordial de garantidor destes direitos Acima de tudo, o que se precisa de fato é a conscientização dos indivíduos no que se refere aos cuidados com os mais velhos. O Brasil precisa de uma sociedade participativa, contribuindo para diminuição das desigualdades e discriminações sociais de toda ordem.

Maria Luiza Póvoa Cruz

Juíza aposentada, advogada, presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do Instituto Brasileiro de Direito de Família em Goiás (IBDFAM) e sócia-fundadora do escritório MLPC e Advogados Associados.

Publicado originalmente na Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo (clique aqui)

Foi em uma reunião na sede da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) que nasceu a Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do IBDFAM. Naquela ocasião, de forma unânime e muito amorosa, todos os presentes elegeram o querido professor Zeno Veloso como patrono do grupo de trabalho que estava sendo constituído a partir dali. Não por acaso.

Como presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do IBDFAM, muito me honra o convite da AASP para contribuir com esta tão importante homenagem que a Revista do Advogado faz ao professor Zeno Veloso. Sua partida, em março deste ano, deixou em todos nós, admiradores de suas teses e de sua forma de ver o mundo, um vazio imenso, por um lado, mas também uma gratidão, ainda maior, por termos tido o privilégio de dividir com ele essa existência.

Grande entusiasta que sou dos assuntos afetos ao envelhecimento, não era raro trocar impressões e informações com o professor Zeno sobre essa parcela da população, da qual ambos já fazíamos parte, e que demandam, cada vez mais, estudo, proteção e, especialmente, um olhar despido de preconceito e discriminação. Em vida, nosso Zeno Veloso nos guiou justamente nesse caminho.

E é por isso que para essa edição da REVISTA DO ADVOGADO optei por abordar um tema ainda controverso na jurisprudência brasileira, sobre o qual Zeno Veloso sempre buscou jogar luz: o regime da separação obrigatória de bens no casamento de pessoas com 70 anos ou mais, previsto no art. 1.641, inciso II, do Código Civil. O jurista defendia a inconstitucionalidade do referido dispositivo e sua exclusão da legislação brasileira por considerar que a norma atenta contra a vontade do idoso, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Para ele, era como reconhecermos uma “semi capacidade” da pessoa em escolher livremente o regime de bens que deseja para o seu casamento, tendo como critério única e exclusivamente a sua idade.

“A intervenção do Estado, no caso, era excessiva, privilegiando o aspecto patrimonial em detrimento do existencial, invadia um espaço que a autonomia privada devia regular, e percebi que a desconfiança ou a suspeita de que o interesse econômico era o que levava alguém a se casar com pessoa idosa não devia chegar ao extremo de uma generalização, praticamente, a uma presunção de má-fé, impedindo que os interessados, pessoas adultas, capazes, com base em sua liberdade e de acordo com suas vontades, escolhessem o regime matrimonial que lhes aprouvesse”, afirmou o professor Zeno Veloso em artigo publicado na Edição nº 20 da Revista do IBDFAM ao expor sua análise sobre tal dispositivo legal, deixando clara sua opinião, de que tal artigo atenta contra princípios e valores constitucionais.

“Integro a corrente dos que não abonam a imposição do regime de separação obrigatória no casamento de pessoas maiores de setenta anos (aliás, é uma faixa etária na qual se encontra o autor destas linhas…!). No mundo em que vivemos, no estágio em que se encontra nossa sociedade, o art. 1.641, inciso II, do Código Civil deve sair de nossa legislação. A disposição precisa ser revogada. É despropositada, desarrazoada. Está maculada com a eiva da inconstitucionalidade”, afirmou Zeno Veloso no mesmo artigo. A legislação brasileira também não admite a fixação de pacto antenupcial que estabeleça por outro regime de bens e nem alteração do regime após o casamento.

Comungo da opinião do professor Zeno Veloso, de que tal dispositivo traduz uma visão altamente preconceituosa de nossa sociedade para com os mais velhos.

Convidada a debater aspectos do envelhecimento humano no curso da pandemia de Covid-19, em alguns eventos on-line, tenho defendido a necessidade de desenvolvermos um olhar diferente para essa parcela da população. Resguardados os direitos conquistados pelas pessoas com mais de 60 anos no Brasil, e que devem ser resguardados, garantidos e efetivados, devemos, por outro lado, compreender que a idade cronológica não deve ser um parâmetro único, absoluto para definir quem é velho ou não. E se essa é uma realidade atual, será, ainda mais, nas próximas três décadas, quando a pirâmide etária no Brasil mudará sua configuração.

Se hoje somos em torno de 10% da população, em três décadas, seremos 30%. Ou seja, 1 em cada 3 brasileiros terá mais de 60 anos. Estudo divulgado este ano pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revela que 75% dos idosos no Brasil contribuem com pelo menos a metade do orçamento das famílias. Se nossos idosos são tão produtivos e tão fundamentais para a sustentabilidade de suas famílias, porque não seriam capazes de escolher o regime de bens em caso de um novo casamento?

Pesquisa recente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia mostra que a solidão é o maior medo das pessoas com mais de 60 anos no Brasil. Desejar dividir a vida com outra pessoa, seja pela primeira vez ou mesmo após uma separação ou viuvez torna-se uma condição cada vez mais comum para pessoas que têm, felizmente, vivido mais e com maior qualidade de vida. E escolher como se quer dividir não só o afeto, mas também o patrimônio tem a ver com preservação da dignidade e autonomia da pessoa humana.

Ao olharmos para o passado, percebemos o quanto a idade cronológica continua a ser utilizada – e a meu ver de forma equivocada – pelo legislador como parâmetro para a definição de vontades e o exercício pleno da cidadania. O Código Civil de 1916 estabelecia como obrigatório o regime da separação de bens em caso de casamento de homens com mais de 60 anos e mulheres com mais de 50 anos. Uma situação absolutamente absurda, que o recorte de gênero tornava ainda mais inacreditável. Mas, igualmente inaceitável que o Código Civil de 2002 mantenha dispositivo flagrantemente discriminatório ao determinar a obrigatoriedade do regime de separação de bens para pessoas com mais de 70 anos.

No artigo assinado pelo professor Zeno Veloso já citado por mim aqui, publicado na Revista do IBDFAM, o jurista faz um apanhado sobre a visão de renomados civilistas acerca do tema. Em seu texto, Zeno Veloso cita, por exemplo, Paulo Luiz Netto Lôbo, para quem também a referida obrigatoriedade é atentatória ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana “por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-la à tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz.” (LÔBO, Paulo Luiz Netto; AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). Código Civil comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. XVI, p. 242). Para ele, “a idade avançada, por si só, não é geradora de incapacidade civil; a norma do art. 1.641, inciso II, é preconceituosa, na medida em que veda o direito ao amor, ao afeto matrimonial e à expressão plena dos sentimentos da pessoa idosa.” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil – Famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 297).

Zeno Veloso também se baseia, em seu artigo, na tese de Caio Mário da Silva Pereira, para quem o art. 1.641, inciso II, do Código Civil não encontra justificativa econômica ou moral, “pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir (…). Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nestas faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir. Trata-se de discriminação dos idosos, ferindo os princípios da dignidade humana e da igualdade” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – Direito de família. 24. ed. rev. e atual. por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. V, n. 400, p. 226).

A análise do tema deixa claro que a doutrina brasileira, felizmente, tende a considerar, quase que à unanimidade, a inconstitucionalidade do Art. 1.641, inciso II, do Código Civil por impor o regime da separação obrigatória no casamento de pessoas idosas. Faz-se importante frisar, também, que o regime obrigatório da separação de bens se aplica tão somente ao casamento e não à união estável, entendimento do qual também comungava o professor Zeno Veloso. Ou seja, no regime da união estável, não se aplica a norma restritiva, objeto de análise deste artigo.

Avalio que esses cenários demonstram um amadurecimento da própria sociedade. Tal matéria, há poucas décadas atrás, sequer despertaria o interesse das pessoas. Se hoje os idosos não são enxergados como seres autônomos e plenos de vontade, a até pouco tempo, eram ainda mais tidos como pesos humanos sem qualquer direito de escolha em relação às suas vidas.

A legislação brasileira protege as pessoas que não possuem discernimento para a tomada de decisão quanto aos atos de sua vida. Para esses casos, existem instrumentos legais, como a própria interdição. Mas aqui estamos falando de pessoas com mais de 70 anos em pleno gozo de suas faculdades mentais e aptos a dar e receber afeto. “A associação da velhice à debilidade intelectual é equivocada e não pode ser presumida de forma absoluta, como prescreve a lei. Ninguém se torna incapaz exclusivamente por causa da idade avançada. Casamentos por interesses patrimoniais podem existir em todas as idades. Deslumbramentos e paixões descontroladas podem atingir a todos. A senilidade não pode ser presumida, principalmente sem admitir prova em sentido contrário.” (FERRIANI, Adriano. A obrigação de casar no regime da separação de bens por causa da idade. Portal Migalhas, 2012. Disponível em

O médico Alexandre Kalache, especialista em envelhecimento, disse, em entrevista, que “quando a gente vivia até os 50 ou 60 anos, a vida era uma corrida de cem metros. Hoje, a vida é uma maratona” (KALACHE, Alexandre. O brasileiro é preconceituoso com a velhice. Portal GZH, 2016. Disponível em

Na maratona de nossas vidas, cabe a nós mesmos definir o melhor percurso e o ritmo mais seguro até a chegada. Envelhecer é uma dádiva! Todos nós queremos envelhecer, porque isso significa ter mais tempo para realizar nossos sonhos e usufruir do que plantamos ao longo do caminho. Mas, sempre com autonomia.

“Fundamental é mesmo o amor. É impossível ser feliz sozinho.”

(Tom Jobim)

Maria Luiza Póvoa Cruz

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Juíza aposentada. Advogada especializada em Direito de Família. Autora de Separação, Divórcio e Inventário por Via Administrativa (Editora: Del Rey); e coautora de Código das Famílias Comentado e Guarda Compartilhada (Editora Método), dentre outros.