Legislativo está mais preocupado em atender reformas de interesse do Executivo, enquanto o interesse de ordem pública, da sociedade, de proteção à família, está adormecido
Paulo Lins e Silva
Entre os poderes da República, quando o Legislativo se omite, o Judiciário o supre, criando jurisprudências. Assim estamos vivenciando no Brasil há tempos.
A doutrina e a jurisprudência são fontes formais do Direito, sendo esta última considerada a fonte alternativa e intelectual. Desde a nossa primeira Constituição, no século XIX, por influência religiosa, tínhamos a indissolubilidade do vínculo matrimonial, repetido no Código Civil de 1916 e, portanto, apenas permitindo o “desquite”.
Na década de 1960, a Suprema Corte, através do ministro Victor Nunes Leal, criou a Súmula 380, para regulamentar as relações entre pessoas que conviviam em concubinato, sem estarem casadas, por impedimento, pois não tínhamos ainda o divórcio. A jurisprudência estava em evidência, protegendo as chamadas “uniões fáticas”, hoje denominadas “uniões estáveis”. Em 1977, derrubando a pressão e os tabus religiosos, o saudoso senador Nelson Carneiro conseguiu, através da Emenda Constitucional nº 9, extinguir o vínculo permanente do casamento, para introduzir o divórcio no final desse mesmo ano. Inicialmente muito restrito (apenas um) e complicado (separados de fato há mais de cinco anos), vindo de novo a jurisprudência aos poucos, modificando os seus critérios, até que a Constituição de 1988 e posteriores leis (8971/94 e 9278/96) aclararam sobre o divórcio e o novo status familiar (união estável), regido no mesmo artigo 226 dessa Constituição, que adotou como seu princípio básico o da isonomia, ou seja, da total não discriminação entre homem, mulher, casamento, união estável, crianças, idosos etc.
Em 2002, após muita polêmica, é promulgado o Novo Código Civil, que muitos chamaram de “Novo/Velho Código Civil”, pois, no campo do Direito de Família, fora redigido em 1969, muito conservador, entrando em vigor com muitas imperfeições e desatualizado, discriminando o casamento da união estável (artigo 1.790), favorecendo na herança ou sucessão a esposa e prejudicando a companheira. Novamente, o Judiciário continua “legislando” com suas decisões nos tribunais estaduais, reconhecendo as uniões homoafetivas e a igualdade na concorrência sucessória entre os casados e os integrantes de uma união estável. Tais conflitos eram habituais até alcançar a Corte Suprema, em grau de recurso, para a sua definição como parâmetro jurisprudencial. Até o novo organismo, o Conselho Nacional de Justiça, já regulamentou a forma dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Enquanto isso, da mesma forma que, nas décadas de 1960 e 1970, os anteprojetos de Nelson Carneiro eram derrubados ou postergados no Poder Legislativo por influência religiosa, o que vemos hoje? Todas as atualizações e reformas incidentes e necessárias no Código Civil, como o Estatuto das Famílias (Código de Família) e alguns outros anteprojetos de leis, estão estancados no Poder Legislativo, coincidentemente por influência religiosa de bancadas parlamentares.
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Hoje, o Poder Legislativo está mais preocupado em ocupar espaços políticos e atender a novas reformas de interesse do Executivo, enquanto o interesse de ordem pública, da sociedade em geral, de proteção à família, está adormecido. É justamente aí que ressurge a mesma Corte Suprema da década de 1960, “legislando” um divórcio, como afirmei, na era do desquite.
A nossa Corte Suprema possui magistrado com experiência no campo do Direito de Família, como o ministro Edson Fachin, como o tinha em 1960 o ministro Victor Nunes Leal. E, novamente cumprindo sua função na história e suprindo a omissão do Legislativo, tivemos a recente decisão do Tema 809 do STF, onde, aplicando novamente os princípios constitucionais da isonomia, passou-se a não discriminar os casamentos das uniões estáveis, em matérias sucessórias e sexuais, tornando inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil de 2002. Não importa se casamento ou união estável, se heterogênea ou homogênea esta última, todos são iguais perante a lei, em respeito à Constituição. Hoje temos um Direito de Família mais atualizado, mais atendente ao clamor social, pois se dependêssemos do Poder Legislativo, estaríamos parados no tempo. É hora de acordar e deixar a religiosidade de lado para atender à evolução das leis com as reformas que a sociedade grita para sua evolução.
Paulo Lins e Silva é diretor internacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família
Fonte: O Globo