A advogada analisa a decisão da Igreja Católica sob a luz do Estado laico e os avanços experimentados pelo Direito e pela sociedade relacionados à garantia de direitos iguais para os cidadãos

A advogada Maria Luiza Póvoa Cruz, sócia-fundadora do escritório MLPC e Advogados Associados, assina artigo publicado nesta sexta-feira, 20, no jornal O Popular, em que aborda a decisão da Igreja Católica em Goiânia de afastar o padre César Garcia de suas atividades na paróquia que comandava, fato ocorrido recentemente e amplamente divulgado pela mídia.

A advogada analisa o fato ressaltando seus reflexos para a comunidade direta e indiretamente atendida pelo pároco. Segundo Maria Luiza Póvoa Cruz, em um Estado laico, secularizado, como é o caso do Brasil, não se pode tolerar decisões que ensejam a intolerância e desconsideram garantias e direitos constitucionais a todos os indivíduos.

“Importante frisar que vivemos hoje em um estado laico, no qual questões religiosas devem permanecer alheias à vida em sociedade, regida pela imparcialidade e pelo respeito a todo e qualquer tipo de crença – e mesmo à ausência dessa. Nesse estado laico, secularizado, os princípios que devem permear todas as relações sociais é o da solidariedade e o do respeito à dignidade humana”, afirma advogada no texto.

Leia a íntegra do artigo.

OPINIÃO

Estado laico e respeito às diferenças

Maria Luiza Póvoa Cruz

“A Igreja deve ser uma casa aberta a todos e não uma pequena capela focada em doutrina, ortodoxia e em uma agenda limitada de ensinamentos morais.” (Papa Francisco, em entrevista publicada pela revista italiana La Civilta Cattolica).

Diante de um dos episódios mais inacreditáveis já protagonizados pela Igreja Católica em Goiás – o afastamento de um padre de sua paróquia em decorrência de uma bênção proferida por ele a um casal gay –, faz-se oportuno relembrar as palavras de Papa Francisco transcritas em entrevista concedida pelo pontífice a uma revista italiana logo após ele deixar o Brasil, no ano passado. Na mensagem do Papa, que falava a uma repórter sobre o que ele dissera dias antes no Rio de Janeiro, durante a Jornada Mundial da Juventude, está a síntese de pilares sobre os quais deve estar fundamentado um estado laico, secular, como é o caso do Brasil: todos somos iguais em direitos e deveres, não podendo ser toleradas quaisquer formas de discriminação e preconceito, bem como interferências nas vidas dos cidadãos fundamentadas em dogmas religiosos.

Retornando ao inacreditável episódio citado no início deste artigo, refiro-me à decisão tomada pelo Clero em Goiânia, comandado pelo arcebispo Metropolitano dom Washington Cruz, de afastar o pároco da Igreja São Leopoldo, padre César Garcia, de suas atividades junto à paróquia, em razão de um ato de respeito e de amor adotado pelo sacerdote dias antes. Sim, parece difícil o entendimento, e o é. Como um padre pode ser afastado de sua paróquia exatamente por tratar com respeito, amor e igualdade àqueles que o vêm em busca das bênçãos de Deus? Padre César Garcia foi afastado de sua igreja sob o argumento de que, ao participar de uma cerimônia que marcava a união entre dois homens, abençoou, ao ser solicitado, o casal, sua família e todos os que ali se encontravam.

Ao Clero, resta o argumento de que a Igreja é regida por normas fundamentadas no Direito Canônico, sob as quais todos os seus integrantes estão submetidos. Mas pesa, contra esse argumento, o fato de que o padre é um indivíduo que faz parte de uma determinada comunidade e dela participa ativamente. Não poderia, dessa maneira, um fato que aparentemente diz respeito a questões internas da Igreja permanecer restrito apenas aos muros que a cercam. Muito pelo contrário. O afastamento do padre César Garcia de suas funções na paróquia atinge diretamente o mundo aqui fora, já que esse sacerdote não vive isolado, mas é parte de uma comunidade e de tudo aquilo que orbita em torno dela. Sabemos todos que padre César Garcia, um educador por excelência, é um pároco expoente no sacerdócio, que fala a linguagem do povo e o aglutina em torno da fé cristã.

Até a Constituição Federal de 1988, vivíamos em uma sociedade fundamentada no Direito Canônico, assentado nos dogmas da Igreja. Mas, importante frisar que vivemos hoje em um estado laico, no qual questões religiosas devem permanecer alheias à vida em sociedade, regida pela imparcialidade e pelo respeito a todo e qualquer tipo de crença – e mesmo à ausência dessa. Nesse estado laico, secularizado, os princípios que devem permear todas as relações sociais é o da solidariedade e o do respeito à dignidade humana.

Como operadora do Direito, sinto-me bastante esperançosa diante de um avanço tão significativo dessa ciência frente às transformações experimentadas por nossa sociedade. O Direito e seus operadores não furtaram-se em se debruçar sobre as novas formas de se organizar e de se relacionar, dando aos indivíduos respostas claras para toda forma de demanda. Vários são os exemplos nesse sentido, como as que envolveram a garantia de direitos em uniões homoafetivas; pesquisas com células-tronco embrionárias; interrupção de gravidez de feto anencéfalo; entre muitos outros.

Ou seja, o Direito precisou se adaptar a uma nova sociedade, que se desenvolve, que se rearranja – que é o que se espera de toda e qualquer organização social. Não se poderia esperar algo diferente da Igreja. Entretanto, o que se vê, ainda hoje – a exemplo do episódio envolvendo o afastamento de Padre César – são repetidos exemplos de intolerância, o que sugere uma Igreja na contramão da caminhada feita pelos seus fiéis. Tenho formação cristã. E, não diferente, espero poder ver, ainda, uma mudança de rota nesse sentido.

Maria Luiza Póvoa Cruz é advogada, juíza aposentada e sócia-fundadora do escritório MLPC e Advogados Associados

Fonte: Assessoria de Comunicação do escritório MLPC e Advogados Associados | Ampli Comunicação (e jornal O Popular)